Revisão de conceitos no Movimento Espírita



LGBTQIA+ no Espiritismo e a necessidade de revisão de conceitos no Movimento Espírita


Homoafetividade; vivências sexuais; relação sexual como afeto e não para fins reprodutivos; adoção; família homo; transexualidades; Intersexualidade; nós LGBT e a forma (majoritariamente preconceituosa) como o movimento espírita lida com os temas que nos dizem respeito.

A comunidade LGBT enfrenta historicamente lutas ciclópicas para se firmar na sociedade enquanto seres naturalmente pertencentes ao diverso humano. Somos oriundos de uma época em que a ciência possuía como meio de verificação da “verdade” apenas os olhos e aquilo que esses eram capazes de captar sem o uso de equipamentos sofisticados, como o microscópio, o telescópio e outros que fogem ao meu conhecimento, mas estão aí, aumentando perspectivas e entendimentos.

A partir do olhar sobre os corpos os gêneros foram diferenciados pela ótica binária, observando-se tão somente a diferença dos genitais e a forma dos corpos, marcada pelo dimorfismo entre o que se padronizou como homem e mulher, moldando-se comportamentos e papeis para este e aquele gênero estabelecido.

"O sexo é tão construído na cultura quanto o gênero e as fronteiras entre o “natural” e o “não natural” são facilmente borradas quando se trata de defini-las a partir do que é considerado dentro ou fora das normas sociais."(MACHADO, 2005)

Com o avanço cientifico e ampliação das possibilidades de estudos, via genética, química dos corpos, seus hormônios, chega-se a conclusão de que ser “homem” e ser “mulher” não se limita ao que os olhos, sozinhos, são capazes de captar, empoderando a nossa comunidade de argumentos sólidos que possam ser lançados às inteligências de nossa sociedade, em prol da defesa de uma sociedade que não se paute exclusivamente no padrão binário para estruturar sua linguagem, seus serviços, sua rotina, enfim, toda a sua forma de vida.

"(...) nas classificações médicas, o sexo é percebido como impresso em diferentes níveis – molecular, cromossômico, gonadal, hormonal e psicológico – sendo que a construção anatômica aparece como a última etapa de um processo (...)." (MACHADO, 2005)

Há poucos meses me encaminharam uma palestra espírita em que a palestrante reafirmava a diferença de genitais para trazer a reflexão de que "fomos feitos" homens e mulheres, e que existem dois tipos de corpos padronizados para a encarnação e reencarnação dos espíritos, que somos todos nós, frisando nas entrelinhas ser transgressão às Leis Divinas afirmar-se transgênero. 

intersexualidade
Palestras como esta demonstram a falta de atualização do conhecimento por parte do palestrante ou sua recusa em aceitar os novos saberes em desenvolvimento nas sociedades. Demonstra  desrespeito ao saber adquirido e vivido por nossa comunidade, difundindo através de diversos materiais educativos voltados aos jovens e palestras em eventos, conceitos antigos, pautados em uma psiquiatria patologizante, que cada vez mais perde espaço para estudos biogenéticos e sociais que buscam firmar o tema em bases que pautam para o respeito, o acolhimento e a promoção da diversidade.

Se hoje já existem estudos comprovando que “ser homem” e “ser mulher” vai além de ter este ou aquele genital, o Movimento Espírita não pode mais reafirmar velhos saberes, pois corre o risco de contradizer a própria doutrina em que se pauta, que anuncia o progresso constante e obriga o espírita a atualizar-se constantemente. 

Palestras como esta mencionada ferem os sentimentos de muitos de nós, que compomos ocultamente as fileiras dos eventos espíritas, em busca da vivência espiritual. 

Se antes fomos ensinados a aceitar nossa “condição” como “punição pelo passado de erros”, e a ciência da época trazia argumentos patologizantes que fundamentavam tal afirmativa e aceitação, hoje vivenciamos uma época científica em que se afirma a diversidade, o que nos remete a pensar que não estamos “sendo punidos pelo nosso passado”, e sim que compomos a natureza em um mundo que ainda não possuía recursos suficientes para conhecer a si mesmo. Resta a este mundo, frente ao desenvolvimento do próprio saber, se adptar na prática, para acolher, dar vida e promover todos os seres que fazem parte de sua composição.

"Evidentemente que essa discussão gera redirecionamentos nos estudos em sexualidade, mas é sobretudo na esfera cotidiana que as consequências desse argumento deveriam provocar deslocamentos, mesmo que, por hora, modestos."  (MACHADO, 2005)

Voltando ao tema da palestra que me foi enviada, os estudos empreendidos pela ciência atual atestam que as variações cromossômicas, fenotípicas, genitais e hormonais, quando combinadas, resultam em 41 variações de corpos diversos, até o momento. Vejamos fragmentos do texto de Alex Bonotto, homem trans e intersexo, militante e produtor de audiovisual, sobre a diversidade dos corpos humanos.

Intersexualidade é o nome dado para as variações do desenvolvimento sexual responsáveis por corpos que não podem ser encaixados na norma binária (mulher|homem, feminino|masculino, vagina|pênis). Essas variações podem se dar em uma ou mais de uma das seguintes categorias, que iremos conhecer melhor a seguir: cromossômica, fenotípica, genital e hormonal. São conhecidas até o momento, entre todas as combinações possíveis entre essas 4 categorias, 41 variações de corpos diversos, e com características que tornam impossível que sejam ditos femininos ou masculinos. 

CROMOSSOMICAS:  Os cromossomos do grupo 46 são os responsáveis pelas características sexuais. Os corpos diádicos (Os outros dois tipos de corpos(mulher|homem), ou seja, os corpos que muitas pessoas acreditam ser os únicos existentes) apresentam sempre cromossomos 46XX para os ditos femininos e 46XY para os ditos masculinos. corpos intersexo podem ter muitas variações desses cromossomos, seguem alguns exemplos XXY, XXX, XYY, X0, XY/X0,XX/X0 ou XX/XY. Cada uma dessas e de outras combinações, acabam por criar corpos com as variações ditas abaixo;
FENOTÍPICAS: Chamamos de fenótipo todas as características físicas determinadas pelos cromossomos, por exemplo, a cor dos olhos ou dos cabelos. As características sexuais também são reflexos fenotípicos dos cromossomos, ou seja, coisas ditas femininas ou masculinas, como seios, barba, voz grave, distribuição de massa muscular, entre outras coisas, são características que podem estar misturadas ou ausentes em pessoas intersexo.
HORMONAIS: Os hormônios são responsáveis por regular funções do corpo mas também são responsáveis pela criação ou acentuação de características corporais ligadas ao dito “sexo biológico”. Então temos os estrógenos, responsáveis pelas estruturas corporais ditas femininas, como o crescimento dos seios, enlarguecimento dos quadris e distribuição de gordura no corpo, e os andrógenos, que tratam do desenvolvimento dos corpos ditos masculinos, fazendo crescer a barba, engrossar a voz, enlarguecer o peitoral e os ombros. Esses hormônios são produzidos, em maior escala pelos ovários e pelos testículos, respectivamente, e podem estar presentes juntos, separados ou simplesmente estarem ausentes em corpos intersexo, necessitando ou não de reposição por medicamentos. 
GENITAIS: Os genitais de pessoas intersexo podem ter variações tanto externas quanto internas. Assim como temos pessoas com o que chamamos de genitália ambígua, temos também pessoas com dois genitais diferentes e completos no mesmo corpo. Temos pessoas com vaginas e testículos, pessoas com pênis e ovários, pessoas com ovários e testículos ao mesmo tempo, saudáveis e funcionais. (BONOTTO, 2017)

Machado (2005) afirma ainda sobre corpos intersex:


"Os corpos intersex são, portanto, emblemáticos, justamente porque desafiam o sistema binário de sexo e de gênero, bem como escrutinam, em diferentes esferas sociais, os critérios utilizados para que alguém possa ser considerado homem ou mulher. Esses critérios variam de acordo com a lógica cultural utilizada pelos atores sociais, tanto que um mesmo corpo de bebê, conforme tomei conhecimento em campo, pode ser classificado como do sexo feminino e do sexo masculino por pessoas diferentes. Logo, a certeza anatômica corresponde ao imperativo social de classificação binária dos corpos, onde um terceiro, que não pode ser encaixado em nenhuma das categorias ou que poderia ser incluído nas duas, será percebido como impuro, perigoso e fora do lugar. No limite, a variação, entendida pelos médicos como ambigüidade, é vista como não natural, ainda que engendrada pela própria biologia."
Nesse sentido se faz necessário que nós, pessoas LG que compõem o MEB, peçamos a nossos coordenadores e dirigentes maior carinho e zelo nas afirmações que repassam a nosso respeito. O preconceito e a desinformação com que somos visualizados tem superado o interesse de nossas fraternidades em se debruçarem sobre o tema com olhar mais fraterno e dignificante. 

O material educativo precisa ser revisto, atualizado. As palestras em torno deste tema precisam trazer os pontos de vista científicos atuais e não as recorrentes e selecionadas afirmações clássicas, ultrapassadas pelo próprio desenvolvimento da realidade.

Em meu meio de convívio pedidos como este foram inúteis. O fechamento de coordenações, desde altos escalões hierárquicos aos menores, é evidente. Há recusa ferrenha em revisar materiais educativos, o que tem contribuído para a perpetuação de preconceitos, afastamento de jovens LGBT da vivência espiritual em uma comunidade espírita e muitas individualidades feridas (aqueles que participam do movimento, das fraternidades, sem expor sua condição diversa). 

Há uma tentativa constante de convencer a pessoa que "pensa diferente" de que, doutrinamente, esta incorre em erros. Rebatendo na tecla: argumento este que contradiz uma doutrina que pede adequação de seu saber sempre que o saber da humanidade avance.

Mas, aos poucos, o progresso se faz. É necessário que nos diversos ambientes onde habitamos o tema seja ventilado, para que tenhamos acesso ao sol que a bondade divina acendeu para todos:

Países ao redor do mundo já estão avançando na proteção e no tratamento humanitário a pessoas intersexo. Mais recentemente temos os exemplos da Austrália, que desde 2013 adota o registro civil de pessoas intersexo e de Malta, onde em 2015 passou a ser proibida a normalização cirúrgica das características sexuais e a discriminação de pessoas intersexo. (BONOTTO, 2017)

Referências

BONOTTO, Alex. Intersexualidade fora da caixa. 2017. disponivel em: <http://www.ssexbbox.com/2017/06/intersexualidade-fora-da-caixa/>. acesso em jan 2019.

MACHADO,  Paula sandrine. O sexo dos anjos: um olhar sobre a anatomia e a produção do sexo (como se fosse) natural. Plataforma Scielo, 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cpa/n24/n24a12.pdf> acesso em jan de 2019.
o que é intersexualidade

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